Miguel de Cervantes: “Novelas Exemplares”

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Miguel de Cervantes: “Novelas Exemplares”. Aguilar. Madrid, 1949 em Obras Completas.

Cervantes-Novelas-ExemplaresO quarto centenário da morte de Cervantes era um apelo muito forte para ser recusado na nossa tertúlia literária mensal. Sabendo que ainda nos restaria a dívida com Shakespeare -que morreu no mesmo dia que Cervantes, 23 de Abril de 1616- decidimos pelas Novelas Exemplares. Não uma obra menor, pois não são poucos os entendidos que dizem que se Cervantes não tivesse escrito D. Quixote, teria passado também à galeria dos clássicos por esta coleção de relatos que ele quis denominar exemplares, porque de todos eles há um exemplo -ou vários- para aprender.

São assim, as Novelas, textos “das quais pode se tirar algum exemplo, e diversão;  porque nem sempre estamos nos templos ou oratórios, ou nem sempre estamos nos negócios por qualificados que estes sejam: há horas onde é preciso recriar-se, e deixar que o espírito descanse”. Cervantes ensina e estimula as virtudes que nos cercam no quotidiano, e que assimilamos enquanto nos divertimos e descansamos escutando estas histórias. Uma didática do dia a dia, sem a necessidade de sérias meditações ou de esforços de aprendizado.

Tentar resumir em poucas linhas estes ensinamentos é pretensão ridícula e insana. Não há como substituir a cadência, os raciocínios e o bom dizer do escritor espanhol, sempre que a tradução seja fiel e esmerada. Um assunto não desprezível, porque traduções mancas são capazes de assassinar o gênio de qualquer um, mesmo de Cervantes.

Desfilam as personagens, com suas peculiaridades e idiossincrasias. Rinconete e Cortadillo, que se envolvem com um verdadeiro sindicato de ladrões em Sevilla -cidade que Cervantes conhecia bem- e que se surpreendem com a curiosa moral de Monipodio e sua gangue. “Coisa nova é para mim que haja ladrões no mundo para servir a Deus e às gentes”. O Licenciado Vidriera, que em acreditando ser frágil e de vidro, tem passaporte para dar todos os recados que bem entende. Não faltam as críticas aos médicos, como sempre muito oportunas e verdadeiras. “Todas as pessoas com quem temos necessidade de trato podem nos fazer algum mal, mas tirar-nos a vida sem ficar sujeitos ao temor do castigo é privilégio dos médicos”.

Ensinamentos de vida e de virtude, que merecem uma reflexão prudente que complementa a leitura cadenciada. “Os golpes que os pais dão aos filhos honram eles, enquanto os que provém do carrasco os afrontam (…)A honra do amo descobre a do criado, olha a quem serves e verás o quão honrado és”. E as paixões humanas, em descrição sempre positiva e estimulante: “Não há mercê que o príncipe faça ao seu privado que não seja uma lança que atravessa o coração do invejoso (…) Os ricos que querem ser liberais sempre encontram quem canonize seus desatinos e qualifique de bons seus maus gostos”.

Cervantes desenha seus personagens com traços fortes sempre atuais, porque pertencem à condição humana. Essa é a marca registrada dos clássicos. Os receios de quem perde a vida guardando a riqueza (Tão pesada carga é a riqueza para aquele que não está acostumado a tê-la nem sabe usar dela, como a pobreza para aquele que de continuo a possui), enquanto descuida as qualidades que de verdade importa (A sabedoria e a virtude são as riquezas sobre as quais não tem jurisdição os ladrões nem a assim chamada fortuna). O estímulo do exemplo que os heróis transmitem (A força dos valentes quando caem passa-se à fraqueza dos que se levantam). A honestidade que caminha de mãos dadas com a verdade (Com facilidade negará as palavras que estão escritas no papel, quem nega as obrigações que deveriam estar escritas na sua alma). E o amor que enxerga muito mais longe que a beleza do corpo (Embora foi a tua formosura corporal o que cativou os meus sentidos, foram as tuas virtudes infinitas as que aprisionaram minha alma).

Nesta agradável leitura tropeçamos com frases e pensamentos que passaram ao patrimônio comum da humanidade, que muitos utilizam talvez sem saberem a origem que se encontra, justamente, nestas Novelas Exemplares. Quem não escutou, por exemplo que “a ociosidade, é a raiz e mãe de todos os vícios”? Ou da importância da humildade que “é a base e fundamento de todas as virtudes e sem ela não alguma que o seja realmente”. E ainda que “a privação é causa do apetite”; quer dizer, basta proibir algo para que se torne sedutor. E, também, que não adiantam barreiras, em forma de ameaças ou punições, quando o interessado não tem vontade decidida de viver a virtude.  A frase do Estremenho Ciumento é tão contundente como difícil de traduzir. Diz assim no idioma original: “Si la voluntad por si no se guarda, no la harán la guarda, miedo o calidad”.

Cervantes tinha 24 anos quando perde um braço na famosa batalha de Lepanto. Assim é conhecido pelas crianças espanholas quando estudam no colégio os expoentes da sua literatura: “O manco de Lepanto”. E assim o representou El Greco num dos seus quadros. Mas Cervantes nunca se considerou um aleijado. Ele mesmo diz, no prefácio das Novelas Exemplares, que aprendeu a ter paciência na adversidade, perdeu a mão esquerda em Lepanto, ferida que embora pareça feia, ele a considera formosa por tê-la adquirido em memorável ocasião, militando sob as bandeiras vitoriosas”.

É este mesmo Miguel de Cervantes, que escreve a Primeira parte de D. Quixote com 58 anos, a segunda com 68 anos, um ano antes de morrer, e publica as Novelas Exemplares com 64 anos, em 1613. Com um braço só, com uma densa história de sofrimentos e cativeiros, mas com um espírito universal, uma mente privilegiada que nos ilumina hoje, após 4 séculos, e sempre. Um clássico que deve ser lido e relido.

E surpreende sempre. Vejam, por exemplo, o delicioso resumo da nossa coordenadora da Tertúlia Literária, a modo de anotações pessoais que quis compartilhar conosco.

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