Dino Buzzati: “O Deserto dos Tártaros”

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Dino Buzzati: “O Deserto dos Tártaros”. Ed Nova Fronteira. São Paulo, 1984. 190 pgs.

O deserto dos tártarosComo fui aventurar-me neste deserto dos tártaros? Foram os comentários de alguns colegas na nossa reunião mensal da Comissão de Humanidades Médicas, no Conselho Federal de Medicina. E também uma referência a Buzzati que apareceu numa das minhas leituras anteriores.  Adquiro o livro na estante virtual (recurso rápido e barato) e antes de partir para a leitura pesquiso sobre o autor. Comenta-se algo sobre literatura fantástica, houve quem comparou Buzzati com Kafka, mas, eu sempre digo que com o máximo respeito pelas opiniões e críticas dos outros, o único modo de conhecer um autor é lê-lo diretamente. Se possível na linguagem original. Ou numa tradução fidedigna.

De fato, é uma experiência única e memorável, a leitura deste livro inquietante. O argumento é simples, quase ausente. Um jovem oficial dirige-se ao seu destino militar com o entusiasmo próprio dos começos. E, quem pretendia ficar por lá um tempo curto, vai consumindo a vida no destino que toma conta dele mesmo. Mas algo tão simples de enunciar, é relatado com mestria por Buzzati. O leitor envolve-se até fazer parte do cenário.

O cenário é o Forte Bastiani, que se “antigamente parecia uma honra, agora parece quase uma punição. Tudo ali dentro era uma renúncia, mas para quem, para que misterioso bem? O formalismo militar, naquele forte, parecia ter criado uma insana obra de arte. Centenas de homens guardando um desfiladeiro por onde ninguém passaria”.

Os diálogo -poucos, sóbrios, pontuais- estão em perfeita sintonia com a passagem cinzenta. “A moda pode determinar a gola baixa -disse o alfaiate- mas para nós, militares, a moda não importa. A moda tem de ser o regulamento (…). Estão aqui esperando, consumindo a vida. (…) Tenha cuidado, o senhor se deixará sugestionar, também o senhor acabará ficando, basta olhá-lo nos olhos”

Esse é de fato o efeito do ambiente do forte sobre o jovem oficial: “Giovanni Drogo teria igualmente ido embora; mas já havia nele o torpor dos hábitos, a vaidade militar, o amor doméstico pelos muros cotidianos. Quatro meses haviam bastado para amalgamá-lo ao monótono ritmo do serviço (…). Aos poucos a fé se enfraquecia. É difícil acreditar numa coisa quando se está sozinho e não se pode falar com ninguém (…) O grave é que ele não tem mais vontade, que ele prefere, depois do almoço ficar cochilando ao sol a correr de um lado ao outro pela esplanada pedregosa.  (…). Naqueles degraus estaria terminando a sua juventude, que no dia seguinte, por nenhuma razão especial, não voltaria mais ao velho sistema, nem mesmo outro dia, nem mais tarde, nem nunca”.

A tradução é de muita qualidade, porque ilumina suavemente descrições magníficas do estado de ânimo -individual e coletivo. “Já esperara demais, e a uma certa idade esperar dá muito trabalho, não se reencontra mais a fé de quando se tinha vinte anos. Esperara em vão, seus olhos leram demasiadas ordens do dia, por muitas manhãs seus olhos viram aquela maldita planície sempre deserta. A indiferença tomara conta dele. Todas as coisas que alimentava sua vida de antigamente tinham se tornado remotas; um mundo alheio, em que seu lugar fora facilmente ocupado”.

O mal se espalha, como paralisia anímica entre aqueles homens que “tendiam instintivamente a olhar para o norte, para a planície desolada, sem sentido e misteriosa. As antigas lendas do Norte, com os tártaros e as batalhas que preenchiam com a sua ilógica presença o deserto inteiro. Era a hora das esperanças, e ele meditava sobre os heroicos feitos que provavelmente nunca se verificariam, mas que serviam para animar a vida (….) Um véu de desilusão que transforma os guerreiros ansiosos por luta em oficiais incolores de guarnição. O forte, por sua vez, abrigava pobres homens indefesos contra o trabalho do tempo, cujo último limite se aproximava. Datas que antigamente pareciam inverossímeis, de tão remotas, agora se aproximavam repentinamente do horizonte próximo, recordando os duros prazos da vida. Ás vezes, para poder continuar, era preciso estabelecer um novo sistema, encontrar novos termos de comparação, consolar-se com aqueles que estavam pior”.

Não há quem resista a semelhante tédio, a mesmice e ao deserto onde os tártaros não aparecem, quando o establishment oficial faz questão de não enxergar o óbvio. Foram muitas as reflexões que surgira em paralelo com a leitura. A lembrança dos mendigos junto ao viaduto que costumeiramente atravesso para ir no meu trabalho, e penso que o ser humano consegue acostumar-se a tudo. Há um potencial de embotamento latente em todos nós, que pode surgir em algumas circunstâncias. Aquele “deixa como está para ver como é que fica”.

Lembrei também de uma paciente que fui ver num hotel -há já muitos anos. Era uma estrangeira, enfermeira de profissão, que vinha acompanhar o marido engenheiro que devia supervisionar uma obra no Brasil. Uma gripe, ou algo pior, a mantinha prostrada. Examinei-a, conversamos longamente, tirei importância à moléstia e, aí, ela confessou: “Acho que isto me aconteceu por causa do livro que estou lendo”…Olhei sorridente e surpreso, enquanto ela complementava: “Sim, a Montanha Mágica. Aconteceu-me como com o protagonista que foi visitar o amigo no sanatório e ficou por lá. O livro me pegou de verdade”. Eu tive dois aprendizados com esta vivência: o primeiro que é preciso deixar o paciente tão à vontade que possa se abrir até em pensamentos que poderiam parecer absurdos (e não o são); o segundo é que há livros que te sequestram, e não te deixam sair. A obra que nos ocupa pode ser um bom exemplo.

E finalmente, a reflexão de maior peso é a que faz referência ao formalismo que impede visualizar a vida real, um deserto sem nenhum tártaro, um forte carente de qualquer papel defensivo. Lembrei da Universidade, da academia saturada de regras, divorciada da realidade da vida, onde se insiste, uma vez e outra em protocolos que desgastam, esvaziam de entusiasmo qualquer projeto, e gasta as vidas até se aproximarem da aposentadoria compulsória. O sistema é capaz de criar um processo de anulação existencial, com normas, sistemas, e avaliações que a ninguém enganam, mas que são o arcabouço para sustentar essa pantomima acadêmica. Nada do que é relevante tem entrada, castra-se qualquer criatividade, anula-se a iniciativa.  Como os soldados que se incorporam ao forte Bastiani, às guardas, relevos e contrassenhas inúteis, e quando algo sai da cinzenta rotina, considera-se ameaça e eliminasse irracionalmente.

As mesmas idas e voltas, o jovem que entra e pensa que com ele vai ser diferente. O velho desanimado e gasto que olha o jovem com receio como um ingênuo que não sabe onde vai entrar. Quando seria tão bom aproveitar a experiência do velho para alavancar o motor juvenil. E volta a começar. Sic transit gloria mundi …. Assim passa a glória do mundo, ….

O livro de Buzzati é toda uma experiência. Cada um terá a sua. E cristalizarão reflexões que ajudarão a ver a vida, a tomar decisões. Mesmo quando a idade não é de um jovem. Como os móveis velhos do forte que se comovem na chegada da primavera, em belíssima e sugestiva descrição. “O tempo em que nas velhas tábuas ressuscita uma obstinada saudade da vida. A planta foi abatida, virou móvel ou tábua. E agora que é primavera, em cada um dos seus fragmentos ainda desperta, infinitamente leve, um sopro de vida”. Quer dizer, uma revolta intrínseca, visceral, contra a mediocridade e o tédio de uma vida cinzenta.

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