España, la primera globalización.

Pablo González Blasco Filmes 3 Comments

España, la primera globalización. Direção. José Luis López-Linares. 2021. 1 h 50 min.

O filme é em espanhol, feito por espanhóis e, imagino -como se verá depois- para que os espanhóis o vejam….e revisem suas próprias ideias. Mas faço questão absoluta de escrever em português em atenção aos meus leitores habituais. Até porque, como bem apontam os que intervêm neste filme-documentário magnífico, o império espanhol -com duração de três séculos- não foi apenas um assunto dos espanhóis, mas algo que afetou o mundo e a civilização.

O convidativo chamado da primeira globalização, é apresentado de modo simples e direto. A China, na dinastia Ming, decidiu que a partir de certo momento (no século XVI) os tributos não seriam mais pagos em espécies, mas em prata. O problema é que não havia prata na China, e os grandes estoques de prata eram espanhóis, na Nueva España, quer dizer, no México. Cria-se uma ponte entre os Ming e os Habsburgo, -a casa de Áustria como a chamam os espanhóis- para resolver esta questão. De um lado os imperadores da China, do outro Felipe II, a quem por sinal, devem seu nome as Ilhas Filipinas (algo que, comprovei, nem todo o mundo sabe).

Após Colombo chegar na América -as Indias ocidentais- , e tendo sido avistado o Pacífico por Núñez de Balboa, Magalhães consegue entrar no novo oceano, através do estreito que leva seu nome. E de lá até Asia -Filipinas, Polinésia, Índia- e retornar contornando o cabo de Boa Esperança, para a península Ibérica. Houve tentativas de fazer o caminho de volta pela mesma  que se utilizou para chegar na Ásia, -das Filipinas até América, e de lá cruzar o Atlântico-, mas todas infrutuosas por conta das correntes. Somente em 1578, um frade estudioso -Urdaneta- e um navegador espanhol -Legazpi- conseguem acertar com a rota que saindo de Filipinas, regressa até Acapulco. Está feita a ligação, através do Pacifico, entre as necessidades da China, e a prata espanhola, convertendo-se Manila no centro das transações comerciais. E, nesse mesmo momento, Felipe II reivindica por direito sucessório que lhe cabe a coroa Portuguesa; quer dizer, o senhor de meio mundo.

Esse episódio, e muitos outros, são relatados em detalhe por professores, catedráticos, especialistas em História de Espanha e de América.  E todos nos advertem que estudar História não serve apenas para entender o passado, mas sim o presente, e poder construir o futuro. E também algo que é tão óbvio como esquecido: não se pode olhar a história com os olhos do presente, uma lente que reduz e deforma os contornos, porque tem um alcance muito limitado, o da própria vivência -um tempo desprezível comparado com os séculos- ; ou a visão desfigurada através do filtro do que outros nos contam, amparados em preconceitos e ideologias.

Uma intervenção destacada, em várias oportunidades, é a de Elvira Roca Barea, autora daquele magnífico estudo Imperiofobia y leyenda negra  comentado em este espaço. O império espanhol -volta a dizer- não é algo espanhol, mas um evento que mudou o mundo. Envergonhar-se disso -como lhes ocorre a alguns espanhóis (e aqui retomo o início das minhas reflexões) é ridículo e ineficaz. A menos -diz ela- que meio mundo se sinta confortável em sentir vergonha.

O tema da vergonha -também muito espanhol- é colocado com acerto por Alfonso Guerra, que foi vice presidente do governo quando o PSOE (partido operário espanhol) ganhou as eleições em 1982. Quer dizer, alguém nada suspeito.  “O problema dos espanhóis é que por algum motivo assumimos as críticas que outros nos fizeram e nos fazem…..e acabamos por acreditar nelas”. Mais claro, impossível.

Ventilam-se com clareza todos os temas que são objeto dos ataques frequentes -clichés promovidos pela inveja, como facilmente se deduz- ao Império espanhol. A tão levada e trazida expulsão dos judeus, esquecendo que foi na Península Ibérica onde os judeus ainda estavam tranquilos -convivendo com a cultura cristã, e com a muçulmana- porque já tinham sido expulsos de todos os outros países da Europa. Lembrei, por exemplo, de que o médico que fez os partos de Isabel de Castela -a rainha Católica- foi um judeu que ela tinha em alto apreço, como explica aquela magnífica biografia de Isabel, o que também é mostrado na Série de TV aliás detalhada, rica em detalhes e fiel aos fatos.

Espanha e Portugal foram os últimos países onde, contra a vontade dos soberanos, os judeus foram expulsos. Mas, por conta dos clichés, somente se fala “dessa expulsão”, como também da Inquisição, esquecendo que Calvino queimou muita mais gente do que os espanhóis. Calvino que tem um belo memorial em Genebra….como o filme mostra, e jocosamente comenta o que aconteceria se alguém decidisse fazer um monumento a Torquemada na Península. Certamente seria cancelado, escorraçado pela mídia, versão moderna da fogueira do século XVI.

Comenta-se também sobre a conquista do México. Cortés, um homem imenso,  que unifica as nações indígenas, submetidas à tirania e aos sacrifícios massivos dos Astecas, e estabelece as bases para um estado. Na verdade, dizem os professores, quem conquistou o México não foi Cortés, mas os índios unificados, processo catalisado por Malinche -a mulher de Cortés. Esse tema foi amplamente comentado na excelente biografia do conquistador de Medellin, uma aldeia da província de Badajoz, na Extremadura espanhola.

As revoltas nos países baixos, onde os motivos religiosos eram, como frequentemente acontece, um simples disfarce para interesses pessoais de poder. No caso, Guilherme de Orange, que quis “liberar os países baixos da tirania espanhola”, sendo que havia mais holandeses no exército de Felipe II.  O aventureiro flamengo, Orange, que em tempo foi um fiel servidor do Rei da Espanha, aproveitou a maquiagem religiosa -como sempre acontece nas chamadas guerras de religião- para satisfazer os próprios interesses políticos.

E muitos aspectos notáveis -que habitualmente se desconhecem- são comentados no filme. A reforma do calendário Juliano (46 AC, de Júlio Cesar) fruto do trabalho da Universidade de Salamanca, apresentando o calendário que usamos até hoje. As muitas universidades fundadas na América -que não era colônia mas província espanhola, com os mesmos direitos que, por exemplo, quem morava em Toledo ou em Burgos. Para ser exatos, quando se funda Harvard em Boston, os espanhóis já tinham fundado mais de 10 Universidades em Iberoamérica. A do Peru, por exemplo, antecede Harvard em 70 anos.  Não pode faltar a figura de Francisco de Vitoria, o dominicano professor em Salamanca, que foi pioneiro na defesa dos direitos humanos dos indígenas,  e que da nome à sala do conselho da ONU, em Genebra.

São muitos os recados -depoimentos sérios, acadêmicos, fundamentados- que confirmam o que suspeitamos: as narrativas atuais que descontroem a história, e a contam de modo diferente. Eu mesmo, visitando recentemente o Museu de Ipiranga -magnífico, recomendo vivamente- vi algumas crianças surpreendidas diante do quadro do Pedro Américo, “porque no colégio dizem que não foi nada disso: que não havia uniformes pelo calor, que D. Pedro não estava no cavalo, etc.”. Ninguém explica aos coitados o que é uma pintura simbólica, algo assim como dizer que o Moises de Michelangelo tinha um nariz diferente daquele que foi esculpido. Uma ignorância arrogante, que descontrói a arte…..para depois descontruir a História.

Por aquilo das afinidades, enquanto rascunhava estas linhas, tirei da minha estante um livro que estou folheando neste momento.  Um estudo do historiador francês, Joseph Pérez: (“La légende noire de L’Espagne”), autor que já conhecia por outros trabalhos, e que é creditado universalmente como um especialista no século XVI espanhol .

Entre as muitas coisas interessantes, em completa sintonia com estes comentários, encontro uma citação de Juan Valera, um escritor e diplomata espanhol de finais do século XIX, um dos homens mais cultos da sua época. Copio diretamente, em livre tradução do francês: “A mania de menosprezar nosso passado tem, creio eu, causas mais profundas. Quando algo hoje tem pouco valor – ou é considerado de pouco valor – a mente humana tende a rebaixar a ideia disso também no passado; inversamente, quando há grandeza no presente, a mente sempre tende a embelezar e magnificar seus primórdios e mesmo os estágios intermediários, por mais humildes e grosseiros que tenham sido. Por exemplo, quem chamaria de gloriosa a triste revolução inglesa de 1688 se o Império Britânico não tivesse posteriormente alcançando tal esplendor? Não me ocorreria contestar os méritos extraordinários de Shakespeare, apesar de suas extravagâncias e monstruosidades, mas Shakespeare seria tão famoso, estaria ao lado de Homero ou de Dante se, em vez de inglês, fosse polonês, romeno ou sueco? Inversamente, quando um povo parece estar em declínio, submetemos a sua arte, sua literatura, suas produções científicas, sua filosofia, a um julgamento muito mais severo do que deveria ser (…) A ideia que os estrangeiros têm da Espanha hoje é quase sempre negativa. Pior: na energia e no ardor que colocam para nos denegrir, às vezes encontramos ódio. Todos falam mal da Espanha hoje; muitos denigrem, menosprezam ou estigmatizam a Espanha de ontem. O que reforça essa tendência, além da má-fé, é que nós mesmos esquecemos nossa própria história. Um elemento caracteriza o que nos habituámos a designar como a lenda negra anti-espanhola: o complexo de inferioridade e frustração de alguns espanhóis, que acabaram por interiorizar todas essas críticas”. Quer dizer, o mesmo que Alfonso Guerra afirma no filme.

Adiantando-me à pergunta que provavelmente me chegará: “mas onde consigo ver este filme?”. Embora a web informa que 96% das pessoas gostaram deste filme, não vejo indicação de plataformas onde assistir. Assim sendo, vamos globalizar o conhecimento: cheque esta Web Alternativa baixe o filme, assista e desfrute na desconstrução das lendas dos últimos séculos….promovidas pelos próprios espanhóis.

Comments 3

  1. Maravilhoso. Uma síntese que nos leva a reaprender eventos e consequentemente seus impactos na história. Obrigado 👏👏👏👏👏

  2. Dr. Pablo, conhecia-o como ótimo e dedicado médico e cineasta. Agora o conheço como historiador e patriota. Aula magna, como diria na Academia. Obrigado. Luis Tadeu Dix

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