Ferenc Molnár: “Os meninos da Rua Paulo”.

Pablo González Blasco Livros 2 Comments

Ferenc Molnár: “Os meninos da Rua Paulo”. Companhia das Letras. São Paulo. 2016. 183 págs.

Por conta da nossa Tertúlia Literária mensal , volto sobre este livro após mais de quinze anos da primeira leitura. Mas, agora, meus olhos -e o meu coração- são outros, em maior sintonia com o povo húngaro (não com a língua, obviamente) após ter lido Sándor Márai, Magda Szabo e, principalmente, a magnífica biografia de Paulo Rónai. Ele é o último responsável por termos hoje este livro entre as mãos, traduzido num português magnífico, que agrada crianças e adultos.

Dele é também o prefácio desta edição, onde se pode ler o seguinte comentário, contrapondo que embora os livros para adultos possam tornar-se simbólicos para os jovens, “ainda mais raro o caso contrário: livros destinados originariamente a um público de jovens e que passaram a interessar pessoas de todas as idades. Um deles é, sem dúvida, Os meninos da rua Paulo , do húngaro Ferenc Molnár. Como é que um livrinho especialmente escrito para os adolescentes de Budapeste se metamorfoseia numa obra-prima clássica, lida com encanto por pessoas de todas as idades, de todos os países?”. E adverte sobre o escritor: “Foi relatada por um de seus participantes, ainda bastante perto da mocidade para levá-la a sério, já bastante longe para dela sentir saudades (…) Os meninos da rua Paulo é dessas leituras que nos acompanham pela vida afora, livro de aventuras que vale por um estudo de psicologia, livro de memórias em que não se percebe a presença do autor, livro de guerra que nos reconcilia com a humanidade.”

Lá encontramos, de modo simples, transparente, todas essas virtudes que nos esforçamos em inculcar aos jovens. Uma educação que respeita o vigor dos anos adolescentes, mas sabe orientar os caminhos que levam a bom porto, à integridade de caráter.

A prudência no comando, incarnada em Boka, o líder dos meninos da Rua Paulo. “Boka era um rapaz justo. Castigando-se a si mesmo, acabava de dar um exemplo de hombridade superior aos da aula de latim, cheia de “caracteres romanos”. Mas Boka também era homem e tinha as suas fraquezas”. E os que ficam em cima do muro -os hesitantes, que se transformam em traidores como Geréb, “que deu um ronco, igual ao do leão quando o domador o fita bem nos olhos. Acanhou-se e repôs o chapéu na cabeça, encolhendo os ombros. Boka acrescentou baixinho: — Deixe o homem. Gosto de pessoas de coragem, mas isso de jogar o chapéu não tem sentido”

Uma variedade de caracteres, cada um do seu modo, confere um colorido realista ao cenário: “Nos bolsos de Csónakos havia de tudo. Não há armarinho com sortimento mais completo. Havia ali canivete, barbante, bolas de gude, maçaneta de cobre, pregos, trapos, livrinho de notas, chave de fenda, sabe Deus o que mais”. E o vendedor ambulante, figura sempre presente nestas topografias escolares: “Os rapazes gastam todo o dinheiro que têm no italiano do portão — diziam. E o italiano sentia que sua empresa não poderia permanecer por muito tempo nas proximidades do colégio. Aumentou, pois, os preços. Uma vez que tinha de sair dali, queria pelo menos lucrar um pouco mais”.

As crianças  defendem o seu espaço, o grund  (terreno baldio), para se divertir com os jogos. Esse será o campo de batalha, o leitmotiv do romance, que é também cobiçado pelo grupo dos camisas vermelhas, opositores ameaçadores, que esgrimem seus argumentos: “Fazemo-lo para termos um lugar onde jogar pela. Aqui não é possível, e na rua Eszterházy é preciso sempre brigar pelo espaço… Precisamos de um terreno para jogar pela, e acabou-se. -Assim, decidiram a luta por motivo semelhante ao que desencadeia as guerras de verdade. Os russos precisavam de mar, por isso atacaram os japoneses. Os camisas-vermelhas precisavam de um terreno para jogar pela, e, como não havia outro jeito, iam recorrer à guerra”.

Assim descreve Molnár o cenário da batalha, aproveitando para nos apresentar àquele que será o verdadeiro protagonista, um homem de caráter, o mais novo de todos:  Nemecsek. “Havia quatro ou cinco desses fortes em diferentes pontos do terreno, e cada um deles tinha o seu capitão, assim como o seu tenente e o seu alferes. Era essa a organização do exército. De soldados rasos, infelizmente, só havia um. Em todo o grund , os capitães e os tenentes davam ordens, mandavam fazer exercícios e impunham castigos a um único soldado. E Nemecsek obedecia a todos com verdadeira felicidade. Há também guris assim, que gostam de obedecer a ordens. A maioria, no entanto, gosta de mandar. É bem humano isso. Eis por que não é de surpreender que no grund todos fossem oficiais, e apenas Nemecsek soldado raso”.

O mais jovem dos garotos, “um rapaz de caráter, que não quer absolutamente ler uma carta destinada a outrem” vai se transformando em exemplo de coragem, integridade, e determinação. A traição de Geréb, a negociação com o inimigo, de peito aberto, é o momento culminante que impõe respeito ao próprio chefe adversário: “A luz da lanterna caiu sobre a linda cabecinha loura de Nemecsek e sobre seus trajes brilhantes de água. Encarava Geréb nos olhos com a coragem e o orgulho de um coração limpo, e sob esse olhar o outro sentia a consciência como que esmagada por um peso. Todos compreenderam que o lourinho era um verdadeiro herói, um menino que merecia ser adulto… As duas sentinelas da ponte, que haviam assistido mudas ao episódio, fitavam-no, mas não se atreviam a embargar-lhe o passo. Mas, quando Nemecsek pôs o pé na ponte, Chico Áts bradou em voz tonitruante: — Continência!”. E o garoto, encarando o traidor: “Prefiro ficar na água até o Ano-Bom a conspirar com os inimigos de meus amigos”.

O retorno do traidor, a ponderação prudente do líder-general, diante do pedido da ovelha perdida: “Por mais que vocês me houvessem enxotado, pois o meu coração vocês não puderam enxotar e ele sente com vocês”. Mas a volta sempre é complicada, já que “ esta é a sorte do traidor: desconfiam dele mesmo quando fala a verdade (….) Boka ouviu-o com atenção, calado. Lamentava que houvesse entre os seus comandados rapazes tão tacanhos. Era um moço inteligente, mas ainda não sabia que os outros são totalmente diversos de nós, e que devemos aprendê-lo, cada vez, ao preço de uma decepção”.

A batalha acontece finalmente. Não há negociação nem subterfúgios, nem de um lado nem de outro. Luta em campo aberto, como homens de honra. Os camisas vermelhas recusam os caminhos tortos: “Nós não vamos subornar ninguém, nem regatear. Se não nos derem o grund por bem, tomá-lo-emos à força. Não quero saber nem de suborno, nem de Eslovaco, raios que o partam! O que você nos propõe é uma coisa indecente”. As regras são claras: “Em combate de grupo podemos ser mais numerosos; só em combate singular é proibido que duas pessoas ataquem uma só”.

A descrição do ambiente é quase épico, sem perder o formato juvenil: “A bandeirinha estava amarrotada, rasgada; via-se que já fora disputada. Mas era justamente o que havia de bonito naquela bandeirinha: estava esfarrapada, como uma bandeira de verdade que volta da batalha (…) Por outro lado, sentiam-se no mais aceso da luta; já não se assustariam tão facilmente. Na verdadeira guerra, com os soldados de verdade, dá-se o mesmo. Enquanto não veem o inimigo, têm medo até das moitas do caminho. Mas quando as primeiras balas lhes passam, assobiando, perto do ouvido, criam coragem, sentem-se como que embriagados e esquecem que estão correndo para a morte”. E a advertência sobre o papel do líder: “Correspondentes de guerra verdadeiros, que assistiram a batalhas de verdade, dizem que o maior perigo que ameaça um exército é a confusão. Os generais têm menos receio de centenas de canhões que de uma confusãozinha de nada, que pode em poucos instantes transformar-se num verdadeiro caos”.

Um livro -assim foi comentado na Tertúlia- onde os meninos, com independência dos adultos encontram o seu caminho de crescimento, de maturidade. “Soltaram um suspiro de alívio. Adulto nenhum lhes metia medo. Prova disso era o veterano de nariz verrugoso do parque do Museu, que não podia com eles”.

E junto com o comentário, a pergunta que não quer calar: será esse mundo, romântico e quase perfeito, onde o respeito pelo adversário e a cortesia imperam, algo fictício, próprio de seres ingênuos que ainda não experimentaram a selva trágica em que o mundo se converte? Ou será, talvez, a realidade, aquilo que é inerente ao ser humano e que depois, com as agruras da vida, se deturpa, perde o foco, e acabamos esquecendo do que é realmente importante e real? A mitologia nos lembra que Zeus, sabendo que o homem é um ser que esquece -esquece o essencial, não das bobagens- criou as artes para lembrar-lhe de quem ele, o homem, é, quer dizer, tem de ser.

Por isso encaixam bem os comentários finais, a modo de posfácio, que esta edição contém. Copio literalmente: “Este clássico da literatura juvenil, escrito há mais de cem anos num país distante, a Hungria, lembra-nos de uma verdade tão central quanto óbvia: que, nas horas e situações decisivas de suas vidas, os jovens querem mesmo é estar uns com os outros. São os amigos e adversários que ocupam suas mentes e darão e/ou receberão de cada qual as ideias e os exemplos positivos ou negativos (…) A disciplina militar e as tensões que dela decorrem, a lealdade e a traição, o heroísmo e a covardia, a rivalidade, a inveja e a nobreza: todos esses elementos são tratados na obra com a mesma seriedade com que seriam abordados num livro para adultos. O romantismo que permeia o espírito marcial do livro, seu apego a questões de honra, o respeito que inimigos (que se combatem mas não se desprezam) sentem uns pelos outros, a aceitação de uma hierarquia justificada pelo mérito, o apego ao valor e à coragem”. E conclui em outro comentário: “Nessas poucas páginas temos a glória, o fracasso, a coragem, a covardia, a alegria de viver o instante e a sabedoria de ver as coisas como elas realmente são”.

As coisas como elas são. A força educadora do exemplo -do exemplo dos adultos, e também dos próprios pares- que, vagarosamente, fisiologicamente vai esculpindo os caráteres. Uma educação que é lenta, silenciosa, mas eficaz. Algo do qual nos temos que convencer, porque no final é o que realmente forma as pessoas, como se resume naquele ditado contundente: “O que você faz grita tão alto, que não consigo escutar o que você me diz!”. Falar menos, fazer mais, de modo constante, é o que transforma as pessoas.

Comments 2

  1. Deve ser realmente um livro lindo, verdadeiro e perturbador.
    Mas são meninos, fala de um universo masculino, real e importante, onde a mulher não exerce qualquer papel, está fora da cena! Será única e exclusivamente espectadora!

  2. Fiquei maravilhada com o tema! O mundo infanto-juvenil e seu papel na formação das futuras pessoas adultas a partir das experiências diárias e dos desafios que servem de introdução ao mundo.
    Penso no que ocorre atualmente com o mundo virtual frequentado diariamente pelas crianças e adolescentes, que é propiciado pela internet de acesso amplo e fácil a qualquer hora. Ele substitui a realidade por imagens idealizadas e fantasias. O que poderá sobrevir deste novo terreno de experiências?
    Obrigada por comoartilhar esta excelente abordagem crítica do tema!

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