Stefan Zweig: Adeus Europa. O Encanto da Cultura em Família

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Stefan Zweig: Farewell to Europe. Diretora: Maria Schrader. Josef Hader, Barbara Sukowa, Aenne Schwarz, Matthias Brandt, Charly Hübner. (2016). 106 min.

O nome do escritor austríaco acompanhou a minha infância e adolescência. Meu avô materno e um tio avô paterno sempre falavam de Stefan Zweig. Nas partidas de Dominó- jogavam muito bem, chateavam-se quando perdiam, e no final quem lucrou fomos as crianças que dominamos as contas das fichas- saia o nome de algumas das suas obras. Lembro de uma que o meu tio sempre comentava: La Piedad Peligrosa, era o nome em espanhol. Devia ser para prevenir-se nas partidas de domino e não dar moleza para as crianças, não ter dor delas, pois o tiro sai pela culatra. O mesmo que acontece ao protagonista do romance, que se engraça -sem chegar a amar- com uma moça deficiente, que acaba fazendo dele gato e sapato.

O título em português (acabo de pesquisar na internet) é Coração Impaciente, mas em inglês se aproxima mais do castelhano: Beware of Pity, quer dizer, cuidado com as falsas piedades. Com essas informações que hoje estão ao alcance de todos, consegui ligar os meus professores do Dominó, com Stefan Zweig e o porque da presença do escritor judeu entre as fichas alvinegras. E reparei -uma vez mais- que de nada adianta ter informações disponíveis, se não temos vivencias que as costurem. Quem não mama a cultura, as informações de internet apenas mascaram uma subnutrição crônica e inútil. Vale lembrar que eu sempre levei muito a sério os comentários do meu avô e do meu tio avô, homens que tinham atravessado a guerra civil espanhola, com perdas e até com passagens pela cadeia. Quer dizer, esses homens que pela dureza da vida, possuem uma especial sabedoria do que é realmente essencial, e o que é perfumaria. Dai que o nome do escritor ressoasse com cerimônia nos meus ouvidos.

Até agora não li o romance em questão, é uma dívida a saldar. Mas o nome do autor austríaco fez se presente muitas vezes na minha formação, durante a juventude, na universidade, enfim, na vida. Li muitas das biografias que escreveu; algumas, literalmente as devorei. Fouché, o homem que sabe situar-se durante a revolução francesa no time que sempre ganha, se articula desde o seu low profile, antecipa-se aos fatos, pula fora na hora certa, e lá está na linha de chegada para abraçar aos ganhadores. Fernão de Magalhães, uma aventura palpitante da primeira navegação em volta ao mundo; o comando de alguém que não negocia com os amotinados (sem piedades perigosas), mas que se perde pela vaidade. Maria Antonieta, o amadurecimento de uma mulher aparentemente frívola na solidão do seu encerramento. Mary Stuart, a Rainha da Escócia, e as complicações do assim chamado Reino Unido, que parece mais unido na vontade de quem manda, do que na realidade dos fatos. Sim, Stefan Zweig fez-me ver a história como algo próximo, e as suas biografias são luz que simplifica o que as aulas e os livros de história continuam tornando complicado. Por isso recomendei a muitos dos meus alunos e colaboradores, sempre com grande sucesso. Um autor que não á toa era dos mais lidos durante o século XX. Talvez o de maior sucesso em língua alemã, pareando-se com Thomas Mann: outro gigante, por vezes mais complicado. Eu só enfrentei Os Buddenbrook com 25 anos e A Montanha Mágica com 30, depois de ter lido muitas das obras de Zweig.

Por tudo isso, quando sentei para assistir este filme, encontrei-me com um velho amigo da família.  Entendi o porquê do seu sonho brasileiro, e porque o Brasil seria para ele o país do futuro (disso falava minha avó materna, que também lia Zweig, mas não jogava Dominó). Na verdade, não um pais para o futuro, mas um pais para construir o mundo do futuro. Um exemplo a seguir. Quem teve de se exilar, como muitos outros, por causa da ascensão do nazismo na Alemanha, encontrou no Brasil uma convivência harmónica de raças, religiões, classes sociais. Enfim, aquilo que o Brasil é, sempre foi. O Brasil profundo, não o dos pseudo- intelectuais que querem negar o óbvio, mas o do cortador de cana na Baia, o das pessoas simples que conquistam o coração machucado do escritor.

E o filme? -perguntará quem se aventure a ler estas linhas. O filme é inseparável de tudo o aqui anotado. O que vemos -dizia Fernando Pessoa- não é o que vemos, senão o que somos. Não posso ver um filme de Stefan Zweig divorciado da enxurrada de todas estas lembranças. E, para minha satisfação, encontrei na tela uma personagem -suprema interpretação de Josef Hader- que corresponde perfeitamente à ideia que eu tinha formado desde a mais terna infância.

Um homem pacífico, que faz questão de não falar mal de ninguém, de nenhum pais. Atitude notável em quem teria crédito e prestígio suficiente para condenar o regime absolutista. “Nunca falarei mal de ninguém, nem da Alemanha, nem de nenhum pais”. O jornalista -como aquele intelectual que também graça no nosso Brasil- responde: “Quer dizer, que os artistas e os intelectuais vão ficar à margem do que acontece, do povo?”. Com uma classe imensa, Stefan responde: “As obras de arte têm seu impacto político, sua tradução social; mas um artista não está ao serviço disso, não escreve slogans”.

Aumentou ainda mais a minha admiração por Zweig ao ver que o mundo se faz melhor se cada um faz bem o que tem de fazer. No caso do escritor, a produção literária. Isso é o que dá saída, traz esperança, ao invés de gastar o tempo em abaixo assinados e manifestações que são uma soberana perda de tempo, além de uma elegante desculpa para deixar de cumprir com nossa obrigação, e de colocar os talentos que cada um tem para rodar. É assim que se faz um mundo melhor. E dentre esses talentos conta-se o prestígio que, no caso do nosso escritor, o utiliza continuamente para encontrar vistos de acolhida aos refugiados judeus que fogem do nazismo. E assim chega aos 60 anos, já vivendo no Brasil, e aos compassos finais do filme. “Quando um homem chega aos 60 anos tem de se esconder, como dizia Tolstoi”. O interlocutor lhe responde: “Tolstoi? Mas ele chegou aos 80” “Escondia-se bem”, conclui Zweig.

O final da vida de Zweig, mostrado com discrição, também é mundialmente conhecido: o suicídio em Petrópolis, junto com a sua secretária, que se converteu na sua segunda mulher. Quero recordar que esse final trágico até apareceu nas partidas de Dominó, em algum momento. O escritor está cansado. Diz que está morto, somente esqueceram de enterrar ele. Não consegue escrever, ou talvez lhe parece que o que escreve não serve para mais nada. A sua Alemanha não existe, as pessoas parecem aprovar a guerra, não tem mais fôlego para ajudar exilados em troca de recepções em embaixadas que o enfastiam. O tédio toma conta de vida que lhe parece sem sentido. Lembrei do que tinha lido há pouco numa biografia de Edith Stein “Perguntei-me porque entre os judeus o suicídio acontece com relativa frequência. Penso que sua incapacidade de encarar com tranquilidade a ruina da vida exterior é consequência de um defeito de perspectiva em relação à vida eterna. Um judeu pode trabalhar duramente, de modo infatigável, suportar as maiores privações enquanto veja um objetivo diante de si. Se isso falta, sua energia desaparece, a vida se lhe apresenta sem sentido. A imortalidade da alma não é um dogma para eles”. Lendo isto lembrei imediatamente de Viktor Frankl e da busca de sentido de que nos fala no Psicólogo no Campo de Concentração, que depois tomou forma na sua Logoterapia. Resistem mais e melhor -no campo de concentração e na vida- não os aparentemente mais fortes, mas os que tem um sentido para continuar vivendo e lutando.

Esse final, triste e duro, nunca fez diminuir em mim o mérito e a gratidão que devo a Stefan Zweig, pelo muito que aprendi com ele. O filme, mais uma vez, confirmou minha atitude. É um grande filme? Não sei, mas para mim foram duas horas na companhia de um velho amigo da família, de um professor que, com seu jeito tímido, me fez lembrar algo que quando nos cansamos deixamos cair no esquecimento: não reclame do mundo, ponha os teus talentos para rodar, faça o teu melhor. Algo que também meu avô e meu tio sempre me diziam. Nas partidas de Dominó e na vida.

 

 

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  1. Pingback: Stefan Zweig. “Coração Inquieto” | Pablo González Blasco

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