O Lar das Crianças Peculiares: Colocando os talentos ao serviço do próximo

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(Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children) 2016. Diretor: Tim Burton. Eva Green, Asa Butterfield, Samuel L. Jackson, Kim Dickens, Allison Janney, Ella Purnell, Judi Dench, Chris O’Dowd, Rupert Everett, Terence Stamp. 127 min.

o lar das crianças peculiaresConfesso que com esse título e sob a direção de Tim Burton, o somatório de peculiaridades era tanto, que o resultado não se me apresentava convidativo. Para minha sorte tropecei com uma crítica de um informativo de cinema eletrônico que me chega regularmente. São acadêmicos que ensinam cinema numa Universidade europeia, o que também não é garantia de nada. Mas a afirmação era categórica: “o melhor Tim Burton desde Big Fish -As histórias do peixe grande. Provavelmente superando-o”. A imensa figura de Albert Finney, o contador de histórias no Peixe Grande, veio à minha memória. E o puxão de orelhas que dá no filho quando lhe diz: eu conto histórias verdadeiras, se você não acredita o problema é seu, não meu. No final, as histórias, o filho, o pai, e o peixe grande alcançam a redenção através da simplicidade. Bastou esse arco voltaico, entre os comentários que tinha lido e as lembranças do Peixe Grande, para disparar a faísca que me levou a assistir o filme.

Gostei demais. Um filme notável, uma maravilhosa fábula sob o comando do sempre surpreendente Tim Burton. E como todas as fábulas, prestam-se a variadas interpretações. Mas, bom é dizer, que a fita está esteticamente muito bem construída. É bonita, visualmente cativante, impõe-se na própria imagem, cria espaço para que as reflexões -que surgem, na hora e muito depois, aquele efeito retardado, paladar com bom sabor de boca do cinema de classe- sejam embaladas por uma melodia harmônica, uma sinfonia visual.

o lar das crianças peculiares - 1Miss. Peregrine é nada menos que Eva Green, atriz em quem nunca apostei nada desde as andanças com Bertolucci. Equivoquei-me. A megera rebelde de Os Sonhadores toma conta do filme, das crianças, e da sua natural peculiaridade num papel sob medida. Fosse uma fada madrinha, toda doçura e candidez -não vamos citar aqui atrizes, mas o espectro é amplo- não teria conseguido incarnar essa personagem que é ao mesmo tempo, cuidadora dedicada e guardiã agressiva, exigência inegociável e pura consciência de missão. E toneladas de compreensão para as peculiaridades de cada um dos hóspedes do seu curioso lar.

o lar das crianças peculiares - 2Burton apresenta-nos seres diferentes, com deficiências notáveis, e virtudes incomuns. São os peculiares, possuidores de poderes que são, ao mesmo tempo, sua força e sua fraqueza. E que conseguem o convívio harmônico quando colocam essas peculiaridades ao serviço dos outros. Aqui está o miolo do filme, o grande recado. Os talentos -e as deficiências- tem uma utilidade que é função direta do serviço ao próximo. Quando as peculiaridades se encistam no egoísmo, na busca do proveito próprio, sobrevêm o caos. E isso também é mostrado com maestria e elegância, sem perder a força estética. Porque, naturalmente, como em toda fábula, tem os maus da história, os que desentoam.  E também os que estão desencaixados: aqueles que não sabem qual é a sua peculiaridade -afinal, o que eu faço no meio desta gente? – até que descobrem a utilidade da sua vida e do potencial que lhes foi confiado.

o lar das crianças peculiares - 3Qualquer semelhança com o mundo real, não é mera coincidência. É mesmo o nosso mundo, espelhado num relato que poderia ser contado para crianças -é assim que Burton se apresenta nos seus melhores momentos- até que descobres que é quem está contando o conto, quem resulta afetado, aprisionado pelo encanto da própria história. E os que não acreditam -como no Peixe Grande- é problema deles, não da história.

o lar das crianças peculiares - 4Enquanto escrevo estas linhas -o tal efeito retardado do filme- lembro da frase de um santo contemporâneo que afirmava: Para servir, servir. Quer dizer, para ser útil, para prestar para alguma coisa é necessário decidir-se a servir os outros. Sem serviço, a vida não tem sentido, afirmava Ortega. E o ser superior, acrescentava (e nós pensamos, será o ser peculiar, com seus talentos?) é superior porque sabe exigir-se mais do que os outros, busca os deveres, sem acomodar-se nos direitos.

Santos, filósofos, Tim Burton, e os que pegamos carona nas suas reflexões, e decidimos com o simpático protagonista percorrer o percurso da nossa própria vida.  Em descoberta ampla e sincera das nossas peculiaridades. Talentos, potencial, limitações, até defeitos: tudo isso é um capital magnífico quando sabemos, com generosidade -com consciência de missão, como Miss Peregrine- alocá-lo ao serviço dos demais.

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