Friedrich Durrenmatt: “A Suspeita”.

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Friedrich Durrenmatt: “A Suspeita”. Círculo do Livro. 1975. 157 págs.

Quando publiquei um comentário sobre a obra clássica de teatro deste mesmo autor, A Visita da Velha Senhora, além de uma amável resposta, ganhei este livro de uma colega: “É prosa, mas o miolo ético é o mesmo. Vás gostar”. Coloquei na estante, esperando o momento. Porque os livros tem o seu momento, a ocasião que sintoniza com nosso estado de ânimo, com as disposições e com as muitas coisas que baralhamos na cabeça. Quem tem o hábito de ler, sabe disso.

Há livros que se adquirem para ler de bate pronto; outros tem de esperar, alguns se interrompem para depois retomar sua leitura, outros nos olham desde a estante, e até parece que nos interrogam para saber quando chegará o seu momento. Nem sempre sabemos responder, os planos de leitura que fazemos com o acervo de que dispomos são frequentemente mudados. Mas, isso sim, olhamos para todos eles com carinho entranhável, deixando-os amadurecer -talvez amadurecer nós mesmos, como diria Borges- até que surge a faísca, o arco voltaico que faz com que o retiremos da prateleira e o coloquemos em baixo do braço. Não, não é amor a primeira vista, mas amor maduro que embrulha eles -os livros- e nós nas circunstâncias que nesse momento nos rodeiam.

Não lembro quais foram as que cercaram este breve romance do escritor suíço. Talvez a fácil portabilidade do livro, pequeno, numa semana que previa viagens de Uber e algumas esperas. Penso que confessar isso com franqueza, não desmerece a obra; na verdade, faz parte do momento, pois escolher o livro certo na ocasião errada rende péssimos dividendos.

A suspeita do título corre por conta do protagonista, um comissário de polícia que está doente. “Nada é tão ruim como uma suspeita. Sei bem que muitas vezes amaldiçoei a minha profissão…Mas afinal a arte do comissário consiste em descobrir o que é simples”. A suspeita é disparada por uma fotografia onde aparece um médico operando. “A fotografia mostrava apenas a metade do rosto; todos os médicos são iguais quando operam”. A possibilidade de tratar-se de um criminoso surge na cabeça do comissário, e vai tomando corpo.

O seu interlocutor é o médico que cuida dele, também amigo. Não perdem a oportunidade de criticar a classe médica “Médicos, cientistas e charlatães, muitas vezes ambos na mesma pessoa”. Não apenas os médicos, mas os meios de vida que a tremenda variedade de pacientes -que é a variedade humana em si mesma- lhe oferece: “Pacientes tão ricos que mesmo suas doenças são um luxo; nada é possível sem fé; menos ainda quando se trata de hormônios”.

O romance desdobra-se, entre realidades e lembranças -sonhos? quimeras?- e a suspeita vai tomando corpo, possuindo o protagonista. Uma curiosa construção onde a vigília e os tormentos oníricos se entrelaçam, talvez como exemplo do que acontece na vida de cada um. “Entre os pensamentos e a realidade há sempre a aventura desta existência” – aponta o autor. Com toda razão, porque bem sabemos como são ténues os limites entre realidade e ficção, tão frequentemente tumultuados por essa enzima, poderosa e tremenda, da imaginação: a louca da casa, em palavras de Teresa de Ávila, capaz de criar o caos se lhe damos pista para decolar.

A ironia faz presença, em estilo sóbrio, muito suíço: “Zurique não lhe inspirava muita simpatia; quatrocentos mil suíços num mesmo lugar parecia-lhe um pouco demais”. Ironia que também da os seus recados: “O diabo cuida dos escolhidos do seu rebanho melhor que o céu cuida dos seus. A cristandade produziu boas enfermeiras e assassinos competentes”. E alguma carga de profundidade que faz pensar: “Há muito tempo que não penso na história, não só porque pertence ao longínquo passado, mas sobretudo porque era horrível. E a gente prefere esquecer histórias que repugnam”. Esquecer o incômodo, virar a página, sem parar para pensar, sem aprender com os erros. O dilema ético, de que falava a colega que me entregou o livro.  Uma marca registrada de Durrenmatt, que conduz a reflexão tão necessária. Hoje e sempre.

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