Caminhos para a Criatividade

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Kevin Ashton: “How to fly a horse. The secret history of creation, invention and discovery”.  Anchor Books Edition. Penguin Random House. N York. 2015. 314 pgs.

Um amigo me emprestou este livro há alguns meses, mas teve de sofrer a quarentena necessária na estante, em função das pendências -sempre muitas, mais das que o tempo comporta. Coloquei-o  na mala de mão na hora de pegar um voo para Itália, onde tinha agendado compromissos acadêmicos, conferências e congressos, que os anfitriões denominaram “Il Giro Umanístico”. Acabei lendo aos trancos e barrancos durante o itinerário,  entre multidão de imprevistos e deslocamentos em trens,  onde a criatividade teve de ser necessariamente exercitada.

O contexto ajudou-me a perceber o grande recado deste livro: criatividade não é mágica, mas trabalho mesmo. Pegar no batente. O autor desmitifica o gênio criativo, e credita os resultados ao trabalho. Criação não é algo extraordinário, embora as vezes o sejam as consequências. Criar é humano e todos podemos fazê-lo. Pensar que somente os gênios criam, é falácia. O trabalho é mesmo a alma da criação. Levantar-se cedo, chegar tarde à casa, sacrificando lazer e por vezes férias , revisando e revendo, as rotinas diárias, sentar na frente do papel sem saber o que vamos escrever.

Um livro saturado de histórias a modo de exemplos de criação. Não histórias de gênios,  mas de gente trabalhadora e persistente. Na história da humanidade sempre houve criação, e registrou-se como algo normal. Mas apenas a partir do Renascimento é que se começou a conferir crédito aos “criadores”. Por isso, talvez, Gutemberg é mais conhecido do que o criador da roda, ou dos moinhos de vento que, convenhamos, tiveram um impacto pelo menos equivalente. Neste contexto, o autor recorda que a educação moderna enfatiza a importância que deve se dar à criatividade nas crianças, e neste ponto não perde a chance de lembrar desse grande educador –Ken Robinson– de quem já falamos neste espaço.

Os bloqueios à criação são múltiplos e sempre tentadores. O primeiro é admitir que não é fácil, que supõe trabalho. Outro é que não temos tempo. O terceiro é dizer isso não é para mim, eu não sou especial.  Criar não é um momento de inspiração, mas uma vida de trabalho. Assemelha-se mais a monotonia do que a uma aventura. Processos onde nem sempre se apalpa o progresso. Uma longa jornada onde muitos caminhos desembocam em lugar nenhum e os giros se mostram equivocados. O mais importante que os criadores fazem é mesmo trabalhar. A mais importante atitude é não desistir.

Outra advertência importante contra o mito do gênio: Ter ideias não é o mesmo que ser criativo. Criar é executar, não apenas inspiração. Muita gente tem ideias, mas são poucos os que vão atrás. Lembrei do comentário de Unamuno, naquele livro fabuloso –Vida de D. Quixote e Sancho– onde diz que são poucos os que casam com uma ideia e dela fazem família. A maioria toma as ideias como amantes de uma só noite. Por isso, o que realmente faz a diferença é o trabalho, não as reuniões, os comités, as equipes que, sendo importantes, são em muitas ocasiões uma desculpa elegante para a preguiça de gestar, criar e executar.

Entre as muitas citações que o autor recolhe e que não cabe repetir aqui, chamou-me a atenção uma de Peter Drucker, um dos gurus da administração moderna: “um dos segredos da produtividade é ter um cesto de lixo cheio de convites que te fazem e que declinas. Saber dizer que não, focar-se no trabalho e na missão de cada um, resistindo à tentação de entrar em todas as festas e convites. Aprender a dizer que não, tem mais poder criativo do que muitas ideias, insights e talento combinado. A matemática do tempo é clara: temos menos tempo do que pensamos e precisamos de mais do que prevemos”. Hoje não seriam papeis em cesto de lixo, mas e-mails ou mensagens ignoradas ou elegantemente declinadas. A gestão do tempo, o aproveitamento racional desse recurso, a sabedoria das prioridades caminha de mão dada com a capacidade criativa.

A criação, fruto do trabalho esforçado, nem sempre é admitida de cara, porque a novidade tumultua. Alavanca esta afirmação com múltiplas e variadas histórias.  Por exemplo, a do médico húngaro Semmelweis, que começou a lavar as mãos antes dos partos (depois de fazer autopsias) o que diminuía enormemente a febre puerperal. Hoje parece simples, mas em 1846 nada se sabia de germes, bactérias e infeções. Foi banido e eliminado do hospital, sua prática abandonada, e as febres voltaram em curva exponencial. E também a de Rosalind Franklin, que morre em 1958 com 38 anos, e tinha avançado até os modelos da vida e do DNA, que foram “roubados por um colega de trabalho” e desenvolvidos depois por Watson e Crick, ganhando o prêmio Nobel sem mencionar a Rosalind, que tinha estudado em Cambridge mas num college para moças, porque as mulheres não tinham as mesmas oportunidades.

Por isso, o autor recomenda prudência na hora de implantar a criação. Os melhores criadores sabem que as vezes o melhor passo à frente, é dar um passo atrás. Para reavaliar, pensar, perfilar melhor, aprimorar. Não dar mais motivos ao mundo para rejeitar as novidades das que já tem. Pelo menos no embrulho,  não convém ser antigênico. Mudar o mundo é difícil, sempre foi. A inércia segura a mudança. E esta advertência atinge de cheio a educação: Muitos professores dizem que a criatividade é essencial. Mas sempre favorecem as crianças que são regulares, que seguem os protocolos, que não inovam porque inovar é um desafio sempre, e muito mais difícil de controlar.

Capítulo interessantíssimo é aquele onde se aborda a avaliação da criatividade. Vários trabalhos mostram que a expectativa da avaliação tira criatividade, e também diminui o interesse pelo trabalho. Avaliação e remuneração são barreiras para a criatividade. Entre várias experiências citadas de trabalho com grupos, os piores desempenhos são dos que tinham de fazer algo (não era opcional) e seriam recompensados por isso (quer dizer, o emprego de todos os dias). A melhor performance aparece naqueles que poderiam ou não fazer algo (opcional), e nem sempre seriam recompensados (tem outro tipo de motivação).

A recompensa e os prêmios entram neste mesmo cenário. Fala-se de Woody Allen que nunca foi buscar os Oscar que ganhou porque seria um breque para o seu trabalho (e não apenas porque tinha de tocar clarinete, como popularmente se comenta).  Einstein também não foi buscar o Nobel porque disse tinha um compromisso no Japão. E  finalmente, T.S. Eliot, quando ganhou o Nobel de Literatura também não o queria: “É muito cedo, é um ticket para o teu funeral. Depois de ganhar um prêmio destes, as pessoas deixam de produzir, se acomodam. ”. Volta a Woody Allen que, em matéria de criação, nota-se é santo da devoção do autor: Woody não para de pensar, da duro, dedica-se uma vez e outra. “Escrever é duro -diz Allen-  tens que esquentar a cabeça . Depois de muito anos li o que Tolstói disse sobre escrever: ‘ é preciso mergulhar a pena em sangue’. Isso mesmo, nada é de graça”. Alguém comentou que os filmes de Woody Allen são como o aniversário da avó, todo ano tem um, quase em data marcada. Agora vemos que fazer o bolo de aniversário e montar a festa exige trabalho duro, não vem de graça.

Qual é o papel das artes e das humanidades no processo criativo? Outro tópico sugestivo: “Pensamos que paixão é positiva e adição negativa. Mas na prática não se distinguem a não ser pelos efeitos que causam. Adição destrói, paixão cria e por isso serve-se da arte. Ou melhor, a arte e suas manifestações canalizam a paixão para criar ao invés de transformar-se em adição”.

Fala-se da motivação intrínseca que é a única que funciona. Esperar que algo de fora aconteça, é pura procrastinação. Outro bloqueio é preocupar-se com o que os outros pensarão. Uma sadia indiferença é necessária. E dos necessários recomeços no processo criativo. “A coragem de criar implica fazer muitos começos equivocados. Ritual é opcional, mas a consistência não Criar requer horas de solidão. O melhor ingrediente é tempo. Por tanto é preciso usá-lo com sabedoria. A interrupção nos deixa inquietos, nervosos. Criar não é compatível com multitarefa . Mas a interrupção é um tipo interessante de adição. Vivemos numa cultura da interrupção. Precisamos aprender a resistir. O início é sempre mais difícil, depois as coisas funcionam melhor”. Lembrei de algo que li há tempo (não consigo recordar a fonte) onde reuniram uma série de executivos que reclamavam de serem continuamente interrompidos nas suas tarefas por solicitações digitais. Levaram eles até um cenário desconectado….e após 10 minutos revelou-se a inquietação da maioria deles……por sentir falta de serem interrompidos!! É fácil comprovar: quem escreve (ou lê) por exemplo, estas linhas desconectado da internet e do telefone? Quanto tempo aguenta?

Outro capítulo apetitoso é o dedicado aos Meetings e ás Reuniões.  O modo como uma pessoa se comporta numa reunião depende de várias coisas: o nível de autoridade, o humor, experiências previas em reuniões similares, e as relações com as outras pessoas que estão na reunião. E deixa claro algo que todos sabemos (embora nem sempre confessemos): “Não há criação nas reuniões. Criação é ação não conversa. Tem gente que passa metade da vida programando as reuniões, e a outra metade assistindo”. Recomenda poucas reuniões internas, e com pouca gente. Deixar mais tempo para que cada um possa enfrentar o desafio gelado da criação.

E, finalmente, os valores reais da empresa ou corporação onde a criatividade pode ser exercida. Fala de Philip Jackson, aquele que advertia que os alunos criativos são ameaçadores para o professor, quando em 1966 gera o termo pelo qual as organizações transmitem, de fato, os seus valores. O Hidden curriculum (curriculum oculto), algo que hoje virou moda, no âmbito educativo. Explica a competição existente entre compliance (seguir as regras)  e criatividade. Os líderes podem pedir para sermos criativos, mas exigem que nos adaptemos às normas. Sempre isto último é mais importante, mesmo que digam o contrário em momentos de fashion. Por exemplo, o CEO que elogia a criatividade mas coloca todo o orçamento no terreno seguro….Faça o que ele faz, não o que ele diz…..Esse é o verdadeiro curriculum oculto! Se você vive a compliance provavelmente será promovido, mas se arrisca com a criatividade pode ser despedido! Por isso, montar uma organização criativa é difícil, mas manter a criatividade nela é mais difícil ainda.

Lia estes últimos pensamentos quando meu Giro Umanístico estava chegando a Genova, a terra onde nasceu Colombo. Visitei a casa onde viveu Colombo e reparei como  a cidade rende-lhe homenagem, coloca monumentos, jardins com o formato das caravelas…..Mas quem financiou o projeto não foram os Genoveses, nem Venezianos, nem mesmo os portugueses que estavam mais interessados em explorar as costas da Africa.

Imagina: chegar às índias navegando em direção ao ocidente? Muita loucura, muita inovação….Vamos colocar o dinheiro no projeto seguro …….Soa familiar isso? Conclusão: sobrou para os Espanhóis -Isabel e Fernando, os Reis Católicos….Mal tinham conseguido expulsar os árabes da Espanha (após 8 séculos), lá estava Colombo em Granada passando o chapéu para Isabel……Resultado: A Ibero américa (ou Hispano américa) fala espanhol do Rio Grande até a Patagônia. No final, os créditos vão para quem financia o projeto. A palavra Latino América foi um invento francês (Napoleão III) na tentativa de minimizar o que era fato incontestável: Ibero américa foi feita por Espanha e Portugal. O resto não fez nada (se desconsideramos os piratas claro).

Interessante e ilustrativo o que se aprende com as viagens e a inspiração que chega para os projetos que temos entre as mãos. E com um livro como este que, de repente, se adapta ao que estamos vivendo. Vale finalizar com um pensamento que sublinhei com marcador amarelo nas minhas anotações deste livro: “Se não perseguimos os nossos sonhos, eles nos perseguirão como pesadelos”. Talvez esse é o motivo das inúmeras depressões na juventude de hoje: falta perseguir os sonhos, ….ou falta atrever-se a sonhar. O saldo chega em forma de pesadelos. Aí está o desafio da criatividade e a necessidade operacional do trabalho esforçado e diário para conquista-la.

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